A terra onde nasci.


A ti, minha mãe serra, devo o berço de carvalho onde dormi o primeiro sono da vida. A ti devo o corpo que criei no leite da minha mãe, o conforto do teu lar nas brasas de cada inverno, a vida no caldo de cada dia. A ti devo os horizontes do espírito, limitado pelas arestas dos teus cumes; a força do meu temperamento pela escalada repetida nas ásperas encostas; a humildade e insignificância do meu valimento, ao ninho da carriça que é o meu povoado sumido no boqueirão profundo da montanha.Tenho na pele a cor dos teus velhos glaciares, na alma o romantismo trágico do homem que primeiro te visitou, no esqueleto a têmpora dos milhentos arados que te abriram hemorragias mortais.Eu sou o que tu és por ser teu filho e querer beber, toda a vida o sumo total de todas a as tuas tragédias.Prendo-me aos dentes descarnados das tuas gengivas podres ; quero ter nos ouvidos os gritos das tempestades que te devoram; quero ser, na humildade da azenha, a pedra que fazendo pão se consome no átrio abençoado que sustenta de migalhas o povo a que pertenço.Quero gritar dos altos cumes, com toda a força da vida, o hino das madrugadas e os incêndios dos teus poentes, já que tu me baptizas-te na pia sacramental do mundo, ao som dos carrilhões dos teus campanários feitos de sombras de desespero.Serei sempre teu filho, minha mãe serra, esteja onde estiver, viva onde viver, sofra o que sofrer outra coisa não é a vida!Abençoada sejas tu, minha mãe serra, pela esmola que me deste nos teus silêncios, nas tuas alturas, na voz da tua alma impregnada de afectos e de bondade.Para além dos horizontes insondáveis da vida, lá onde se perde o homem nas trevas de uma luz fictícia, eu viverei sempre a lembrar o fulgor dos teus olhos na luz abençoada das noites calmas.Serra minha mãe, abençoa-me e reza por mim no terço das tuas ave marias; nas lágrimas de cada orvalhada, escuta a minha saudade; na dura faina que é amar a terra com todo o meu carinho.Por ti, minha mãe serra, foram todas as linhas do meu arado com que rasgo, na crosta dura da vida, a seara sem fruto, a papoila sem perfume, a silva sem préstimo.Mas disto tudo tu és feita.As migalhas do meu espírito são o sinal de um filho que nunca te esqueceu.Aceita-as nesta hora, que é a hora em que um trapo volteja no extremo do cabo onde a terra acaba e o mar principia.




Lisboa, 10 de Março de 1971




Este documento é uma homenagem ao meu pai: José F. de Brito, só lhe acrescentei a foto.
Encontrei nos apontamentos antigos dele.




José F. de Brito, nasceu na beira alta- Sandomil (serra da Estrela)